quarta-feira, 21 de abril de 2010

A sexta-feira 13 que matou a democracia


A sexta-feira 13 que matou a democracia

Fábio Costa


Para boa parte da nova geração atual, o termo AI-5 não significa muita coisa. Vivendo-se numa fase da história brasileira em que sopram livremente os ventos da democracia, em que se podem criticar presidentes e a imprensa denuncia abertamente escândalos envolvendo altas figuras do poder, torna-se difícil imaginar que, durante pelo menos uma década, o Brasil passou por período obscuro, marcado pelo terror, pela tortura e pelo cerceamento da liberdade de expressão em todos os níveis.
Na noite do dia 13 de dezembro de 1968, uma sexta-feira, o segundo presidente do período militar, o general Artur da Costa e Silva, anunciava à nação em cadeia nacional o conjunto de medidas denominado Ato Institucional N.º 5. Foi o ponto de partida para a fase mais violenta dos 21 anos em que o Brasil viveu sob o regime militar, iniciado com o golpe de 31 de março de 1964, quando as Forças Armadas depuseram o presidente João Goulart.
Mais abrangente e autoritário que todos os outros atos institucionais, o AI-5, na prática, revogou os dispositivos da Constituição de 1967. Ao dar plenos poderes ao presidente da República, reforçou os poderes discricionários do regime e concedeu ao Executivo o direito de determinar medidas repressivas específicas, como decretar o recesso do Congresso – o que foi feito -, das assembléias legislativas estaduais e das câmaras municipais. O governo podia censurar os meios de comunicação, eliminar garantias de estabilidade do Poder Judiciário e suspender a aplicação do habeas corpus em caso de crimes políticos. O ato ainda cassou mandatos, suspendeu direitos políticos e cerceou direitos individuais. Em seguida ao AI-5, o governo Costa e Silva decretou outros 12 atos institucionais e complementares, que passaram a constituir o núcleo da legislação do regime. 
Mais do que isso, o AI-5 representou o “golpe dentro do golpe”, pois foi a vitória da “linha dura” das forças armadas sobre os setores moderados. Com isso, abriu-se a temporada de prisões arbitrárias, e a tortura passou a ser usada como arma de combate aos que lutavam contra o regime – em sua maioria jovens idealistas que tentaram derrubar o governo militar por meio das armas.
Estima-se que, na vigência do AI-5, entre 1968 e 1979, a luta deixou 100 mortos do lado dos militares e mais de 400 mortos e desaparecidos políticos de esquerda, entre eles alguns alagoanos. No campo político, 66 ocupantes de cargos públicos tiveram o mandato cassado, 66 pessoas perderam os direitos políticos, 348 foram aposentadas compulsoriamente – entre elas o então professor da USP Fernando Henrique Cardoso -, 139 militares foram reformados e 129 executivos do governo foram demitidos.

A vitória da linha dura

Logo após a vitória do golpe militar de 1964, os líderes do movimento o definiram como um “movimento legalista”. O general Mourão Filho declarou que João Goulart fora afastado do poder “de que abusava”, para que, “de acordo com a lei”, se opere sua sucessão. Já o general Kruel garantiu que o Exército iria “se manter fiel à Constituição e aos poderes constituídos”.
Porém, quando Castelo Branco baixou o Ato Institucional n.º 2, modificando profundamente a Constituição de 1946, o movimento de 1964 começou a revelar sua face de ditadura. Entre 1964 e 1968, entretanto, o regime militar manteve um perfil moderado. Havia dentro das Forças Armadas divergências sobre o desdobramento da chamada “revolução”. Alguns setores defendiam um retorno gradual à democracia – essa parecia ser a posição de Castelo Branco, primeiro presidente do ciclo militar. Outros setores, então majoritários, eram a favor do endurecimento do regime.
Com a posse do general Artur da Costa e Silva, em 1967, a linha dura das Forças Armadas chegou ao poder. Embora, mais tarde, o segundo general-presidente quisesse promover a redemocratização, as circunstâncias históricas o tornariam o maior responsável pelo endurecimento definitivo do regime.
Pressionado pela linha dura e pelas greves operárias e manifestações estudantis, Costa e Silva encontrou um pretexto para decretar, em 13 de dezembro de 1968, o Ato Institucional n.º 5, chamado de “golpe dentro do golpe”. Na prática, o AI-5 concretizou o golpe de 1964 e deixou claro que os militares estavam dispostos a abandonar sua posição de “poder moderador”.
Em 28 de março de 1968, a Polícia Militar havia invadido o restaurante estudantil Calabouço, no Rio de Janeiro, e, no choque que se seguiu, foi morto o estudante Édson Luís. No dia seguinte, 50 mil pessoas saíram às ruas para protestar. Três meses depois, houve a famosa “Passeata dos 100 mil”. No início de setembro, depois que a PM invadiu a Universidade de Brasília, o deputado Márcio Moreira Alves, em discurso no Congresso, sugeriu que a população boicotasse o desfile de 7 de Setembro e as mulheres se recusassem a namorar oficiais que não denunciassem a violência.
O discurso foi considerado uma ofensa às Forças Armadas, e os ministros militares decidiram processar o deputado, mas, para isso, precisavam de licença do Congresso, já que os deputados gozavam da imunidade parlamentar. Em 12 de dezembro de 1968, o Congresso negou a suspensão da imunidade parlamentar de Alves.
No dia seguinte, disposto a punir o deputado, Costa e Silva reuniu o Conselho de Segurança Nacional, no Rio de Janeiro, e apresentou o texto do Ato Institucional n.º 5. Os ministros militares queriam o AI-5 para calar a subversão à força e “livrar o País do perigo comunista”. Como declarou o então chefe do Estado Maior das Forças Armadas, general Orlando Geisel, “se não tomarmos neste momento esta medida, amanhã vamos apanhar na cara”. O vice-presidente da República, o civil Pedro Aleixo, sugeriu uma solução provisória e defendeu o Estado de Sítio, mas foi voto vencido. Aliás, foi o único voto contra o ato. Para os líderes da “revolução”, era preciso manter a ordem, mesmo que isso implicasse enveredar pelo caminho da ditadura pura e simples. Até hoje é famosa a frase do então ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho: “Às favas, senhor presidente, neste momento todos os escrúpulos de consciência”.


FRAQUEZA - Para o jornalista alagoano Anivaldo Miranda – que na época vivia clandestinamente no Rio de Janeiro depois de ter deixado Alagoas para não ser preso -, a decretação do AI-5, interpretado como um ato de força do regime, foi, na verdade, um ato de fraqueza. “O fortalecimento da sociedade civil organizada e do movimento estudantil incomodou os militares”. 
A ação do movimento estudantil na época foi o estopim para o endurecimento do regime. Em Maceió, os estudantes chegaram a ocupar o Cepa e fazer greve em protesto contra a política do governo federal. O assassinato de Édson Luís, no Rio de janeiro, gerou um grande ciclo de manifestações contra a ditadura e em defesa do ensino público e gratuito. Os estudantes lutavam contra a cobrança de anuidades nas universidade públicas e contra os famosos acordos MEC/Usaid (agência norte-americana), que reformaram o ensino.
As universidades latino-americanas sempre foram vistas como um foco de resistência à política externa dos Estados Unidos. A partir de uma estratégia do Departamento de Defesa Norte-Americano, a privatização foi vista como um instrumento para conter o forte caráter contestador da juventude latino-americana. A luta contra a privatização acabou se transformando numa luta contra o regime. Para paralisar o movimento estudantil e impedir o crescimento do movimento sindical, além de neutralizar o crescente prestígio da oposição parlamentar, os militares editaram o AI-5.
A economista e ex-suplente de senadora Maria Ivone Loureiro – ela própria uma vítima dos horrores do AI-5 – lembra que na época vivia-se uma efervescência política muito grande, devido a acontecimentos importantes em todo o mundo, como a Revolução Cubana e as figuras de Che Guevara e Fidel Castro, a Guerra do Vietnã e as revoltas estudantis na França. Ela ressalta, porém, que os militares não haviam tomado o poder por si sós, pois havia interesses da grande burguesia nacional e internacional, representada pelo grande capital norte-americano. Não só a ditadura brasileira, como as experiências da Argentina e do Chile, tiveram incentivo direto do governo dos Estados Unidos.
Miranda ressalta que até o AI-5 vivia-se uma ditadura moderada, mas, a partir da decretação do ato, o regime militar revelou seu conteúdo fascista, de conotação ideológica abertamente reacionária. “Era uma ideologia primária, que, inspirada nos cânones da Guerra Fria, dividia o mundo em dois blocos e considerava que todos aqueles que não concordassem com o regime eram inimigos da pátria”, explica. Essa concepção – que teve como principal ideólogo o general Golbery do Couto e Silva, criador do Serviço Nacional de Inteligência, o SNI, e da “Teoria do Inimigo Interno" – gerou um clima de perseguição, “dedurismo” e terror, que se espalhou por todos os planos da vida pública, segundo Miranda.
O ex-deputado estadual e federal Eduardo Bonfim (PC do B), na época já militante do movimento estudantil, conta que, para muita gente, o papel de “dedo-duro” passou a ser um meio de ascensão social, para obter favores do regime. Os dedos-duros estavam em toda a parte e às vezes denunciavam colegas de trabalhos por motivos pessoais, que nada tinham a ver com subversão. “Nenhum cidadão estava livre de ser preso”, diz Bonfim.

Os militares na política

Desde a proclamação da República, os militares eram chamados a intervir no processo político em momentos de crise, mas retornavam aos quartéis assim que os problemas estivessem contornados. Em 1964, entretanto, eles se manteriam por mais de duas décadas no poder, promovendo o fechamento político do País e se impondo à sociedade civil, dispostos a colocar em prática suas teses desenvolvimentistas.
O auge da combinação fechamento político/euforia desenvolvimentista se deu no governo do general Emílio Garrastazu Médici. Após o AI-5, vários setores de oposição, como o Partido Comunista do Brasil (PC do B) e o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), ficaram convencidos de que o único caminho que restava para combater o regime e destituir os militares era a luta armada. “Foi o próprio regime que impôs a luta armada, pois não sobravam opções de resistência a não ser a luta política ou a luta armada”, afirma Eduardo Bonfim. “O PC do B combinou a luta armada com a luta política”.  Para Maria Ivone, a luta armada correspondia a uma necessidade da época. “As prisões estavam cheias, havia tortura e uma ditadura que tratava a vida humana de forma banal”, afirma. 
A luta armada incluía assaltos e sequestros. Um caso famoso ocorreu em setembro de 1969, quando o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Elbruck, foi sequestrado e trocado por 15 presos políticos. O episódio está relatado no livro “O que é isso, companheiro?”, do hoje deputado federal Fernando Gabeira, que era um dos sequestradores. Por causa disso, até hoje Gabeira está impedido de entrar nos Estados Unidos.
Médici, o terceiro e mais linha-dura dos generais-presidentes, começou o combate sem tréguas aos chamados “terroristas” e os venceu. Com o surto desenvolvimentista batizado de milagre econômico, repressão e ufanismo andaram de mãos dadas. Numa nação em crise, jornais e TVs, sob censura, só davam notícias boas.
Emílio Garrastazu Medici assumiu a Presidência  em 30 de outubro de 1969 e governou até 15 de março de 1974. Seu governo ficou conhecido como “os anos negros da ditadura”. O movimento estudantil, sindical e as oposições foram contidos e silenciados pela repressão policial. O fechamento dos canais de participação política levou uma parcela da esquerda a optar pela luta armada e pela guerrilha urbana. O governo respondeu com mais repressão. O governo Medici lançou também uma ampla campanha publicitária com o slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o”. O endurecimento político foi respaldado pelo chamado “milagre econômico”: crescimento do PIB, diversificação das atividades produtivas, concentração de renda e o surgimento de uma nova classe média com alto poder aquisitivo. 
Anivaldo Miranda ressalta que essa opção pela luta armada custou caro. “Centenas de jovens perderam a vida, embora tenham deixado para o País um exemplo de coragem e abnegação e amor à liberdade”. Outros partidos, como o Partido Comunista Brasileiro (PCB), entretanto, desde o princípio tentaram mostrar à opinião pública que o único caminho efetivo para a derrota do regime seria a luta política de massa.
Grupos políticos ajudaram a articular a oposição no Congresso e mantiveram o movimento sindical, mesmo durante o endurecimento do regime, além de criar órgãos alternativos de imprensa e organizar a resistência política em todos os planos da vida brasileira.
Mas nem o fato de ter optado pela resistência política na legalidade livrou alguns partidos da dureza do regime. Pelo menos 14 dos principais líderes do PCB foram assassinados nos porões da ditadura, sem que se conheçam as circunstâncias em que eles foram executados. Um desses dirigentes era o alagoano Jaime Miranda. Líderes do PC do B também foram assassinados.
As ações repressivas do governo foram estimuladas por grande parte dos oficiais do Exército, principalmente pelos coronéis. A chamada “linha dura” defendia a pureza dos princípios “revolucionários” e a exclusão de todo e qualquer vestígio do regime deposto. Usando de pressões, conseguiram que o Congresso aprovasse várias medidas repressivas. A emenda das inelegibilidades, por exemplo, aprovada em 1965 antes das eleições para governadores, transformou em inelegíveis alguns candidatos que desagradavam aos militares. Uma das maiores vitórias da linha dura foi a permissão dada à Justiça Militar para julgar civis pelos chamados “crimes políticos”. 

Censura manteve população alheia ao que estava acontecendo

Um dos instrumentos mais atuantes durante os “anos de chumbo” do regime militar e que serviu para manter o povo alheio ao que estava acontecendo nos porões da ditadura foi, sem dúvida, a censura à imprensa e às manifestações artístico-culturais. Oficialmente o Departamento de Censura Federal foi criado em janeiro de 1970, pelo decreto-lei 1.077, com a função de “proibir obras que obedeciam a um plano subversivo para pôr em risco a segurança nacional”. Entretanto, a censura imposta pelo regime militar se iniciara de fato a partir da promulgação da Lei de Imprensa de 1967, do AI-5 e da Nova Lei de Segurança Nacional, de 1969.
A partir desse conjunto de leis, a presença dos censores nas redações dos principais jornais, revistas e TVs se tornou fato corriqueiro, e a lista de assuntos proibidos ia aumentando cada vez mais. A imprensa publicava receitas culinárias e poemas no lugar dos textos censurados. A revista Veja utilizava figuras de diabinhos.
Entre 1973 e 1978, só a TV Globo recebeu 270 ordens de censura, a maioria por telefone. Uma delas chegou a vetar a divulgação de uma reportagem sobre um surto de meningite, em 1974. Detalhe: o alerta sobre o problema havia sido feito pelo próprio ministro da Saúde.
Na TV, a novela Roque Santeiro, de Dias Gomes, foi proibida dias antes de ir ao ar. Selva de Pedra teve vários capítulos “tesourados”. Muitas pessoas devem se lembrar do slide exibido antes de cada programa de TV com a autorização da Censura Federal. A censura não se restringiu apenas à palavra escrita. No teatro, dezenas de peças foram vetadas. Na música popular, Chico Buarque de Holanda foi um dos artistas mais atingidos pela tesoura da censura. Mas o símbolo dessa época foi a música “Para não dizer que não falei das flores (caminhando)”, de Geraldo Vandré, proibida por ter letra supostamente subversiva (ofendia as Forças Armadas) e cadência do tipo de Mao-Tsé-tung. Vários filmes também tiveram a exibição proibida no Brasil.
Quem assistia aos telejornais na época – principalmente ao Jornal Nacional da Rede Globo – deparava com um país sem problemas, em franco desenvolvimento. Não era para menos. Só as boas notícias podiam ser divulgadas. Faz sentido, portanto, a declaração do presidente Medici em março de 1973: “Sinto-me feliz todas as noites quando ligo a televisão para assistir ao jornal. Enquanto as notícias dão conta de greves, agitações, atentados e conflitos e várias partes do mundo, o Brasil marcha em paz, rumo ao desenvolvimento. É como se eu tomasse um tranquilizante após um dia de trabalho”.
Com critérios controversos, a tesoura da censura não visava apenas o conteúdo ideológico das obras artísticas. Em muitos casos, tratava-se apenas de preservar a “moral e os bons costumes”. O filme “A laranja mecânica”, de Stanley Kubrick, por exemplo, foi liberado, mas com bolinhas cobrindo a genitália de personagens nus – para delírio da platéia, as bolinhas às vezes erravam o alvo, quando as personagens se movimentavam.
Nos dez anos de AI-5, foram proibidos 500 filmes, 450 peças de teatros e 200 livros. Pelo menos 100 revistas foram tiradas de circulação, 50 letras de música tiveram trechos cortados e 12 capítulos de novelas foram cancelados.
Aos poucos, a censura foi se afrouxando. Mesmo após o regime militar, entretanto, o filme Je vous alue Marie, de Godard, foi proibido pelo governo de José Sarney, por pressão dos bispos católicos, que o consideraram ofensivo à figura de Nossa Senhora. A Constituição de 1988 acabou oficialmente com a censura prévia no País.


A pesada herança


O AI-5 foi revogado pela emenda n.º 11, que entrou em vigor em 1º de janeiro de 1979, dentro do processo de abertura “lenta e gradual” posto em prática pelo general Ernesto Geisel, sucessor de Médici. Entretanto, seus efeitos deixaram marcas profundas na vida nacional. O Ato representou um corte dramático na história brasileira. Como observa Anivaldo Miranda, toda uma geração foi podada e castrada de sua criatividade, na manifestação de seus interesses, na concepção de suas aspirações e na manifestação de sua liberdade. “Com o AI-5, o País viveu anos de obscurantismo que criaram o caldo cultural para a crise moral e institucional que o Brasil vive até hoje”.
Para o jornalista, pode-se até atribuir como efeitos do AI-5 o desenvolvimento da cultura da corrupção, da baixa qualidade da representação política. Nesse período, a população brasileira perdeu capacidade de organização política, comunitária e associativa. “Foram mais de duas décadas sem poder debater, discutir e refletir. O resultado está aí: crise do ensino, crise das organizações populares, crise do modelo de desenvolvimento, crise agrária, modelo deformado de urbanização e falta de planejamento", diz Miranda.
Talvez mais grave do que tudo isso foram os dramas pessoais. Muitas vidas foram interrompidas bruscamente e muitos que sobreviveram ainda trazem sequelas das sessões de tortura física e psicológica. “Os crimes da ditadura precisam ser mais bem esclarecidos”, afirma Miranda, ressaltando que a atual Lei da Anistia é uma farsa, pois boa parte das vítimas não teve seus interesses resgatados.
Para Eduardo Bonfim, o período representou o obscurantismo nas atividades acadêmicas, culturais e sociais no País e impediu o surgimento de uma geração com acesso à cultura e à informação. “Nem o nazismo de Hitler foi capaz disso”.
Tanto Miranda quanto Bonfim e Ivone concordam com uma coisa: o retorno gradual à democracia só foi possível graças à resistência, seja por meio da luta armada, seja da luta política na clandestinidade ou abertamente. Foram pessoas que, mesmo correndo todos os riscos, “vivendo perigosamente”, mantiveram de pé a bandeira da liberdade e da democracia.


Vidas marcadas 

A experiência de quem viveu intensamente essa época

O golpe militar de 1964 e os anos de chumbo que se seguiram a partir do AI-5, em 1968, marcaram a vida de muitos jovens idealistas em todo o País. A luta pela liberdade e pela democracia representou perseguições, prisões, torturas ou, no mínimo, uma vida vigiada e sob forte tensão. Em Alagoas não foi diferente. O jornalista Anivaldo Miranda, o advogado e ex-deputado Eduardo Bonfim e a economista e ex-suplente de senadora Maria Ivone viveram ativamente essa época. Miranda foi obrigado a amargar um exílio de 18 anos longe de sua terra, vivendo na clandestinidade. Bonfim foi um dos líderes da luta política no Estado, sempre vigiado pelo regime, e Maria Ivone chegou a ser presa e torturada, além de ter o marido assassinado pela ditadura.

Exílio forçado

Anivaldo Miranda iniciou sua militância política em 1958, quando começou a participar do movimento estudantil. Em 1964 esteve à frente das grandes manifestações contra o golpe realizadas em Maceió e, ao lado do irmão Valdimir, foi um dos líderes do foco de resistência em Maceió. Para escapar à onda de prisões que se sucederam – o próprio pai foi preso, embora fosse apenas simpatizante -, Anivaldo e seus irmãos foram obrigados a deixar Alagoas clandestinamente, abandonando o curso de Economia.
Continuou sua militância no Rio de Janeiro, participando da reorganização do PCB e do movimento estudantil. Em 1973, com o endurecimento do regime, saiu do País e exilou-se em Copenhague, na Dinamarca, onde ficou até 1980, retornando ao Brasil após a anistia. A volta a Alagoas ocorreu em 1982, para participar da campanha do senador Teotônio Vilela ao Senado e do advogado José Moura Rocha ao governo do Estado, nas primeiras eleições diretas para governador depois do golpe.

Dupla identidade


Eduardo Bonfim era um estudante secundarista quando o AI-5 foi decretado. Ele estudava no colégio Moreira e Silva, no Cepa, um dos focos de resistência ao regime e onde foram realizados protestos e greves. Em 1970, já era secretário-geral do Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e depois presidente do Diretório Acadêmico do curso de Direito.
Bonfim conta que, em 1973, houve em Alagoas uma forte repressão às forças progressistas, e vários líderes estudantis foram presos e torturados, entre eles o falecido jornalista Dênis Agra. Outros tiveram de ir para a clandestinidade ou fugir para não ser presos. Ele não chegou a ser detido, mas teve de responder a interrogatórios na Polícia Federal.
A militância de Bonfim incluía também a clandestinidade. “Eu tinha uma vida dupla. Para a família, para os vizinhos, para a sociedade, enfim, eu era o Eduardo, mas nas reuniões secretas do partido eu era o Manuel”, conta. Todos os que militavam em organizações clandestinas tinham de usar codinomes entre si e não sabiam o nome verdadeiro dos companheiros, para que, se fossem presos, não pudessem fornecer informações precisas aos torturadores. Havia também todo uma estratégia para evitar as prisões, mas isso nem sempre funcionava.
Em 1978, já com os ventos da abertura política, Bonfim foi um dos fundadores e primeiro presidente da Sociedade Alagoana dos Direitos Humanos, que se engajou na luta pela anistia aos exilados do regime. A campanha cresceu e incluiu até uma grande passeata pela Rua do Comércio. Em 1986 ele se tornou o primeiro deputado federal comunista eleito por Alagoas.


Prisão e tortura



Para a ex-suplente de senadora Maria Ivone Loureiro, o AI-5 trouxe marcas profundas. Na época ela militava no Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), que defendia a luta armada tanto na cidade como no campo. O marido, Odijas Carvalho, era um dos líderes do partido em Alagoas. Ivone estudava Economia no Recife quando o ato foi decretado. Em 1969 foi para Fortaleza, estudando e participando do movimento estudantil.
No ano seguinte, com o endurecimento da ditadura, entrou para a clandestinidade. Foi obrigada a mudar de nome várias vezes, utilizando documentos falsos. Chegou a ter treinamento com armas num sítio no Recife. Seguiu para Natal também clandestinamente e lá foi presa em 1971, depois que a polícia descobriu a casa onde ela e companheiros estavam. Poucos dias antes Odijas havia sido preso no Recife e mais tarde torturado até a morte.
Acusada de incitação à guerra revolucionária, criação de partido clandestino e panfletagem contra o regime, Ivone foi condenada pelo Tribunal Militar a 17 anos de prisão, em dois processos, mas o caso foi revisto e ela acabou absolvida num deles. Mesmo assim passou por quatro presídios e ficou dois anos presa, a maior parte do tempo no Presídio Bom Pastor, no Recife.
Ivone conta que chegou a ser espancada, mas a tortura não era apenas física. Certa época, era acordada todas as madrugadas para interrogatórios. A experiência deixou sequelas. “Durante cinco meses eu não conseguia dormir”. As pessoas presas ficavam incomunicáveis.
Após sair da prisão ela voltou à sua cidade natal, Viçosa, e depois continuou os estudos. Filiou-se ao PC do B e participou da formação da Associação Alagoana dos Direitos Humanos ao lado de Eduardo Bonfim, com o qual havia se casado em 1974
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* Matéria publicada originalmente em O Jornal, edição do dia 13 de dezembro de 1998 (com alterações), e vencedora do Prêmio Banco do Brasil de Jornalismo 1999, na categoria Informação Política